Análise Transacional Quarenta Anos Depois

Rosa R. Krausz(*) – rokra@terra.com.br

Fonte: Este artigo foi publicado originalmente no Jornal “OPÇÕES” N° 31 Setembro de 1998.

“Passaram-se 40 anos desde a publicação do artigo de Eric Berne, Análise Transacional: Um método novo e eficaz de terapia de grupo, no American Journal of Psychotherapy, vol. 12, 1958. Como escreveu o autor no citado artigo, “condensei nesta breve comunicação material que facilmente poderia encher um livro e que poderá ser melhor esclarecido em seis meses ou um ano de supervisão clínica”.

Este trabalho é um dos marcos do nascimento da Análise Transacional que há muito vinha sendo gerada por seu criador. Outro foi a realização da primeira sessão de treinamento, em Fevereiro de 1958, da qual participaram seis pessoas, que se transformou no conhecido Curso 101. A primeira associação oficial de analistas transacionais data de 1960 e recebeu o nome de Seminários de Análise Transacional de São Francisco. Em 1961, Berne publica Análise Transacional em Psicoterapia e, no ano seguinte, inicia-se a publicação do Transactional Analysis Bulletin que, em 1970, transformou-se no Transactional Analysis Journal. Em fins de 1964, esta associação contava com 250 membros, a maioria dos Estados Unidos e alguns poucos do Canadá e da Inglaterra, transformando-se na International Transactional Analysis Association. Ainda em 1964 vem à luz Os Jogos da Vida que, curiosamente, só se tornou um best-seller alguns anos depois, juntamente com outras duas publicações, Eu Estou OK, Você Está OK de T. Harris e Nascido para Vencer (Muriel James).

Em meados da década de 70, a Análise Transacional começa a atrair interessados no continente europeu, inicialmente na França e na Bélgica, expandindo-se lentamente para Itália, Alemanha e Suíça. Na atualidade, a Europa concentra o maior número de analistas transacionais e conta com a maior associação de AT no mundo, a EATA, com aproximadamente 5.000 associados.
Austrália, Nova Zelândia, Japão e Índia possuem também um número considerável de analistas transacionais, enquanto nos Estados Unidos a ITAA conta com apenas 900 associados americanos e outros países com cerca de 1.000 associados.
Na América Latina o movimento, iniciado em meados da década de setenta, teve uma rápida ascenção seguida de brusca queda, resultando na sobrevivência de grupos organizados apenas no Brasil, México e Venezuela.

Como escreve Graham Barnes (1), com muita propriedade, “a AT foi abençoada e algumas vezes amaldiçoada com sua ampla aceitação pelo público e pelos profissionais…… Desenvolveu-se num contexto altamente competitivo, e este leva, com freqüência, as pessoas a serem atraídas para suas diferenças e contribuições singulares”.

Gostaria de complementar este pensamento de Barnes lembrando que quando qualquer ramo do conhecimento, na sua fase inicial de sedimentação, é submetido a variações e/ou combinações com outros ramos do conhecimento igualmente pouco consolidados, o que se observa é um esgarçamento e uma fragilização de suas bases teóricas, gerando, por vezes, interpretações simplistas e superficiais, tendências divergentes entre si que competem para atrair seguidores. Este processo dificulta a manutenção de um quadro de referência teórico comum, uma prática coerente e a preservação da identidade e da coesão grupal dos seguidores.

Já em 1977, apenas sete anos após a morte de Berne, Barnes (2) distinguia pelo menos três escolas distintas dentro da Análise Transacional, cada uma com suas características distintas em termos de teoria e prática.

1. A escola clássica

Segundo Barnes, trata-se de uma escola difícil de descrever em função da diversidade de orientações existentes dentro dela, talvez tão grande quanto a que se encontra dentro da própria Análise Transacional. Foi fundada pelo próprio Berne e depois de sua morte concentrou muitos dos chamados analistas transacionais conservadores, discípulos diretos de Berne e por ele reconhecidos como seus herdeiros intelectuais. É o caso de John Dussay, o criador do Egograma, de Claude Steiner, criador da matriz do Script, do desenvolvimento da Teoria das carícias ou toques e, posteriormente, do movimento da alfabetização emocional e da terapia radical, Steve Karpman criador do Triângulo Dramático, de Muriel James com a Auto-reparentalização, de Pamela Levin com os estágios de desenvolvimento, de Fanita English com suas idéias sobre Disfarces e epi-script, de Pat Crossman com os 3 Ps, de Taibi Kahler, como o Mini-Script. Coincidentemente, todos eles foram ganhadores do Prêmio Eric Berne e tiveram um papel importante na divulgação dos princípios da AT dentro e fora das Estados Unidos, gozaram de grande popularidade e prestígio, permanecendo como figuras marcantes na história da AT.

2. Escola da Cathexis

A liderança desta escola foi exercida por Jacqui Schiff que, juntamente com seu filho Aaron, recebeu o Prêmio Eric Berne em 1974. As teorias e métodos desenvolvidos por esta escola, da qual fizeram parte também Ken Mellor e Eric Schiff, ganhadores do Prêmio Eric Berne 1980, foram utilizados, e ainda o são, por alguns psicoterapeutas principalmente na Austrália e na Índia. As práticas e métodos desta escola, que foram objeto de controvérsias entre os analistas transacionais, sofreram profundo questionamento, tanto de ordem ética quanto teórica, quando Jacqui Schiff foi processada judicialmente por um cliente, culminando com sua exclusão da ITAA em 1978 e a cassação de sua licença para praticar psicoterapia em território americano.

Sem entrarmos no mérito da questão, este incidente repercutiu, como seria de se esperar, negativamente, nos círculos psicoterápicos nos Estados Unidos, dentro e fora da comunidade transacional, criando dissidências, divisão de lealdades e ferindo a imagem da Análise Transacional.

Este é um exemplo dramático do esgarçamento e fragilização das bases de um campo de conhecimento quando submetido à variações ou combinações radicais.

3. Escola da redecisão

Criada por Robert e Mary Goulding, teve dentre seus discípulos mais conhecidos John McNeel, Ruth MacClendon e Ellyn Bader e gozou de ampla aceitação entre os terapeutas que freqüentaram o Western Institute para fazer terapia pessoal e treinamento.
Com a morte de Robert e o fim do Western Institute, os princípios e técnicas que resultaram de uma combinação entre terapia gestáltica e Análise Transacional continuam a ser divulgados por Mary Goulding e utilizados por muitos analistas transacionais.

É preciso reconhecer que cada uma das citadas escolas, se é que assim podem ser consideradas, representaram um papel importante na divulgação de versões personalizadas de Análise Transacional, embora numa cultura altamente competitiva como a americana, esta busca pela originalidade/diferenciação/praticidade fosse, subjacentemente, motivada pela competição por seguidores e consumidores. Este fato contribuiu, a nosso ver, para retardar o processo de fortalecimento de uma base teórica comum que permitisse a testagem e integração consistentes destas diferentes contribuições e de outras advindas do desenvolvimento dos vários ramos das ciências do comportamento.

Foi necessário o surgimento de uma nova geração de Analistas Transacionais, menos competitivos e personalistas, mais preocupados em consolidar a teoria do que na sua mera instrumentação, mais disposta a correr o risco de apontar as fragilidades e inconsistências da teoria e da prática existentes, para que este movimento decolasse. São dignos de nota os trabalhos de Erskine e Zalcman (3) (Sistema de Disfarces), Bill Cornell (4) (A Teoria do Script de Vida: Uma Revisão Crítica do Ponto de Vista da Teoria do Desenvolvimento), Bruce Loria (5) (Epistemologia e Reificação da Metáfora em Análise Transacional), as contribuições de Petruska Clarkson, do casal Allen, R. Massey, para citar alguns. A análise sistemática à luz das novas contribuições das ciências do comportamento tem contribuído para a revisão de muitas das contribuições e incertezas a respeito de conceitos fundamentais da Análise Transacional como é, por exemplo, o caso do Script. Como escreveu Berne (6) na parte final do Olá, “A Análise Transacional é um entrelaçamento tão rico de conceitos, todos consistentes entre si, que é possível andar em qualquer direção e chegar a algo interessante e útil.

Parece-nos que o grande desafio é conquistar esta consistência. Nestes quarenta anos de existência, a Análise Transacional expandiu sua abordagem sobre comportamento humano, incorporou um tanto aleatoriamente muitas contribuições sem preocupar-se com a sistematização coerente destas. Nos últimos anos, entretanto, tem-se delineado mais claramente a necessidade de uma revisão critica da teoria e da prática com vistas à esta sistematização e testagem da consistência deste corpo teórico/prático e filosófico à luz dos avanços da ciência.

Tanto quanto a humanidade no limiar do terceiro milênio, também a Análise Transacional encontra-se diante da tarefa paradoxal de reconquistar a sua identidade e resgatar as suas raízes. Ao sabermos quem somos, de onde viemos, onde estamos hoje e para onde queremos ir, será mais fácil encontrar o caminho do futuro.

Num mundo em constante transformação, bombardeado por inovações tecnológicas impactantes, por avanços científicos surpreendentes, pelo desenvolvimento de meios de comunicação que eliminam distâncias, pela crescente virtualização do mundo material, alteração das formas de trabalho e de produção de bens e serviços, modificação profunda das relações familiares, dos métodos de aprendizagem, do papel do poder público, da potência dos meios de comunicação de massa como formadores de opinião, cada ser humano necessitará, cada vez mais, de aprimoramento pessoal constante para conviver com as turbulências que afetam indivíduos, grupos e a sociedade como um todo. A instabilidade externa constante exige o desenvolvimento da estabilidade e do equilíbrio internos, sem os quais a convivência humana se tornará mais e mais conflitiva. A violência, o elevado consumo de drogas, calmantes e estimulantes, a corrupção generalizada são alguns dos exemplos pungentes das disfuncionalidades pessoais, grupais, organizacionais e sociais.

E, de repente, nos vêm à mente algumas das perguntas magistrais que Berne faz na Introdução de Olá:

* Por que as pessoas falam umas com as outras?
* Por que as pessoas gostam de ser amadas?

E diz Berne (7) que as pessoas passam uma vida inteira sem encontrar respostas para estas questões porque não encontraram respostas para uma pergunta que as antecede, ou seja, “Como é que você diz Olá?”.

O grande desafio da Análise Transacional é propiciar condições para que as pessoas encontrem suas respostas para esta questão, pois, ao fazê-lo, estará cumprindo a sua missão de contribuir de forma ativa para a elevação da qualidade de vida de cada ser humano.

Como afirmaram Richard Erskine e Rebecca Trautmann (8) numa recente resposta às críticas de Claude Steiner a respeito da psicoterapia integrativa por eles desenvolvida, “acreditamos que para que a Análise Transacional continue sendo um sistema de psicoterapia e de mudança vivo, culturalmente relevante e significativo, esta deverá continuar a evoluir”.

Referências Bibliográficas:

  1. Transactional Analysis After Eric Berne. Nova York, Harper’s College, 1977, p.5
  2. Op. Cit., ps.13-23.
  3. Ver Prêmios Eric Berne. UNAT-BRASIL, 1983 (nova edição no prelo).
  4. Life Scrip Theory: A Critical Review from a Developmental Perspective. Transactional Analysis Journal (18)4,1988.
  5. Epistemologia e reificação da metáfora em Análise Transacional. Revista Brasileira de Análise Transacional (V), 1995.
  6. O que você diz depois de dizer Olá?. Nobel, São Paulo, 1988,p.325.
  7. Op. Cit., p.19.
  8. in Script, Maio/Junho, ps.5-7.”

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(*) Rosa R. Krausz é Membro Didata da UNAT-BRASIL e da ITAA para as áreas organizacional e educacional e Consultora em treinamento e desenvolvimento de capital humano com vasta experiência no Brasil e no exterior. É autora de diversos livros sobre sua especialidade e de artigos publicados no Brasil , EUA, Holanda, Bélgica, Alemanha e Itália. Conferencista e apresentadora em eventos nacionais e internacionais.