Cronologia da Criação da Análise Transacional
Por José Silveira Passos
Farei aqui uma abordagem cronológica do surgimento da Análise Transacional, teoria da personalidade, criada pelo Dr. Eric Berne na década de 1950.
1945 – Nesta época Berne era psiquiatra do Exército dos EUA – uma de suas missões era entrevistar soldados para serem enviados à guerra. A entrevista era basicamente duas perguntas: você se julga nevoso? Você já procurou ajuda psiquiátrica alguma vez?
Jovem, dinâmico e irriquieto, Berne não suportava monotonia, como por exemplo, atividades repetitivas e até certo ponto enfadonhas; assim anotava as respostas, quase que automaticamente em sua folha padronizada para a entrevista. Em determinado momento, Berne deu-se conta de que estava anotando as respostas mesmo antes de serem respondidas pelos soldados. Além disso, as respostas estavam corretas! Isso chamou a sua atenção, pois como poderia estar ele captando essas respostas? Estaria, de alguma maneira, estas respostas sendo transmitidas pelos soldados de uma maneira não verbal? E acima de tudo, como ele estaria recebendo e captando essas respostas não verbais? Seria de modo intuitivo?
Ele logo inventou uma brincadeira: adivinhar a profissão dos soldados, mesmo sem ainda terem sentados à sua frente. Quando o soldado adentrava à porta da sala, Berne já começava marcar em suas anotações as respostas às perguntas que ainda iria fazer ao soldado. Ou seja, passou a fazer uma brincadeira de adivinhação e acrescentou mais uma pergunta às duas padronizadas: qual é a sua profissão?
Berne ficou surpreso com o resultado de sua brincadeira. Ele verificou que o número de acertos era grande, e isso chamou a sua atenção, de modo que imediatamente começou pesquisar com mais afinco a respeito do que poderia estar levando-o a “adivinhar” as profissões dos soldados, principalmente quando se tratava dos fazendeiros e dos mecânicos.
Assim, Berne começou a indagar-se do porque do acerto maior quando se tratava dos fazendeiros e mecânicos. Passou então a concentrar a sua atenção nessas duas profissões e constatou que dados objetivos, captados quase subliminarmente, estavam levando-o a identificar os fazendeiros e mecânicos. Começou então a levantar todos esses dados na ponta do lápis e, daí então, direciou deliberadamente a sua atenção nos soldados para diferenciar os fazendeiros e os mecânicos, ao invés de brincar de adivinhação.
Essa atitude o levou a um fato estranho: ao querer inferir a profissão dos entrevistados com base em dados lógicos e não mais na intuição, o número de acertos diminuiu significativamente. Mas Berne não ficou surpreso com isso, pois ele sabia que fenômenos idênticos aconteciam com adivinhadores profissionais respeitados. Ou seja, quando procuravam basear-se em dados concretos deixando a intuição de lado, o número de acertos decrescia.
Esse fenômeno da intuição despertou em Berne o interesse, logo ele iniciou uma pesquisa científica sobre o assunto e escreveu alguns artigos a respeito, como se segue.
1949 – 1° Artigo sobre Intuição: The Nature of Intuition. Berne concebe a Intuição como sendo o resultado de mecanismos não conscientes, que atuam durante o contato sensorial com alguém.
Aqui aparece textualmente a definição berniana de Intuição: “o conhecimento através da experiência, recebido mediante contato sensorial com o sujeito, por processo não consciente”.
Berne não poderia intuir a respeito das profissões dos fazendeiros e dos mecânicos se não tivesse tido contato com eles. Pela definição podemos perceber que a intuição depende também da experiências anteriores, ou seja, Berne não poderia intuir se a profissão dos soldados era mecânico (ou fazendeiro) se não tivesse visto um anteriormente.
Nesse artigo Berne afirma que as condições ideais para que ocorra a intuição são a concentração, a atenção dirigida, a receptividade e o estado de alerta. Além disso, a intuição tem um “plateau”, ou seja não pode ir além de determinado ponto, sendo daí para a frente prejudicado pela fadiga por determinados estímulos peculiares.
Berne propõe nesse primeiro artigo um método para pesquisar a intuição. Esse método divide-se em duas partes: a primeira consistindo em “brincadeiras de adivinhar” e a Segunda, racional, que consiste em elaborar o material colhido durante a primeira.
1952 – 2° artigo sobre Intuição – Concerning the nature of diagnosis.
Nesse artigo Berne apresenta uma técnica de diagnóstico intuitivo. Essa técnica consiste em ficar em silêncio diante do paciente, concentrado, olhando-o de certa forma peculiar nos primeiros momentos da consulta.
1953 – 3° artigo – Concerning the nature of communication.
Nesse artigo, Berne diferencia a comunicação intuitiva da comunicação lógica. Berne compara a somatória dessas duas comunicação com o computador: o computador primeiro faz barulho informando que tem uma informação e depois a fornece. Berne diz que existe um paradoxo entre a cibernética e a psicologia, nesse caso, pois quando se trata de computadores quanto menor o barulho, melhor é a comunicação, enquanto que na psicologia, o “ruído” inicial na comunicação é fundamental para se compreender o que está acontecendo.
Nesse artigo, Berne coloca uma nota de rodapé, descordando de Freud quanto à impossibilidade alegada pelo pai da psicanálise, de se interpretar ou entender as fantasias do paciente, a menos que este as coloque em palavras. Berne cita Darwin em contraposição, que segundo o qual os primeiros momentos da comunicação são fundamentais e esses ocorrem necessariamente através da expressão não verbal.
1955 – 4° artigo – Intuition IV. Primal images and primal judgement.
Nesse artigo Berne conta a anedótica e curiosa estória de sua paciente Belle. Ela tinha o dom de, ao olhar para as genitais de um homem vestido, intuir a respeito de seu grau de potência. Dizia esse aí é “potente paca”, ou esse “não é de nada”. Segundo Berne o seu número de acerto era espantoso.
Berne chama a essa primeira impressão intuitiva, que se pode ter a respeito de outra pessoa, de “imagem primal”.
O conceito de “imagem primal” é a base desse quarto artigo. Esse conceito eqüivale à mais ou menos ao de “imagem primordiais” de Jung.
Berne define “imagem primordial” como uma imagem inicial intuitiva que uma pessoa é capaz de captar sobre outra, capacidade essa que os normais reprimem ou justificam culturalmente, os psicóticos manifestam de modo direto, e os neuróticos expressam em certas áreas.
A grande contribuição de Berne, além de Jung, com esse conceito, é a percepção de como essas imagens influenciam no comportamento das pessoas, levando-se à ação de repulsa ou de aproximação, bem como a julgamentos sobre o valor dos outros, como no caso de Belle, que julgava os homens a partir da imagem primal que captava quanto ao seu pênis e a sua potência.
As imagens primais originam-se na percepção que a criança tem de seus pais, numa fase muito precoce do desenvolvimento.
1957 – 5° artigo – Intuition V. The ego image.
Nesse artigo, Berne a partir da diferenciação entre o nível intuitivo e o nível lógico, conclui que existe duas realidades psicológicas distintas existentes concomitantemente no ser humano.
Essa diferença, Berne ilustra com a “estória do boiadeiro” . Conta ele que um menino vestido de “cawboy”, estava ajudando um peão a selar um cavalo. Ao terminarem o peão disse: “obrigado, boiadeiro”, ao que o menino respondeu: “eu não sou um boiadeiro de verdade, sou apenas um menino pequeno”.
Tratava-se de um advogado, cliente de Berne, que contou essa estória, e durante a sessão prossegui: “É como eu me sinto. Às vezes eu sinto que não sou um advogado de verdade. Sou apenas um menino pequeno.
Segundo Berne, tudo o que era dito a esse cliente, era ouvido por duas pessoas dentro dele: o advogado adulto, por fora, e o menino pequeno, por dentro.
Ambas as partes eram conscientes. Eram duas realidades psicológicas distintas: uma, evidente para o mundo exterior, lógica, e racional, uma “gente grande”, e outra, que seria facilmente identificada por outrém através da intuição, uma relíquia do que o indivíduo foi na infância, uma “pequena pessoa viva”, desprovida da lógica dos adultos.
Berne constatou em seu cliente o mesmo processo que antes havia constatado em si mesmo, ou seja, duas realidades psicológicas distintas: de um lado, a “pequena pessoa viva” capaz de diferenciar intuitivamente os fazendeiros e os mecânicos, de outro lado, a “gente grande”, capaz de levantar no lápis os dados que caracterizam os fazendeiros e os mecânicos. Na verdade a “pequena pessoa viva” fosse um melhor adivinho, as suas adivinhações talvez tivessem pouca serventia, sem o processo elaborativo da “gente grande”.
Nessa época, os experimentos de Penfield já eram conhecidos, pois datam de 1952. Esses experimentos eram referentes às experiências realizadas com epilépticos, estimulando-lhes um lobo temporal e com isso fazendo voltá-los à revivência de momentos da infância.
Esses experimentos levava o indivíduo à revivência da situação infantil através de todos os sentidos ao mesmo tempo, como se tudo estivesse acontecendo outra vez. O sujeito via-se mergulhado no ambiente de infância, via a si mesmo como criança e re-experimentava outra vez as mesmas emoções de outrora. Era como se o indivíduo vivesse pela Segunda vez a mesma situação. O sujeito era platéia e ator ao mesmo tempo.
Esse experimento era compatível com a descoberta de Berne, de que funcionam ao mesmo tempo, no indivíduo, a “pequena pessoa viva” e a “gente grande”. No experimento de Penfield, enquanto a “pequena pessoa viva” vivia o passado, a “gente grande” relatava a experiência ao examinador.
Kubie, comentando o experimento de Penfield, disse que os sujeitos atuavam simultaneamente em dois níveis psicológicos: um arquipálico (ligado à infância) e outro neopálico (ligado ao momento atual). Berne inspirado nessa terminologia, inicialmente, quando fala na existência de órgãos psíquicos (subdivisões da psiquê), os denomina Neopsiquê e Arqueopsiquê.
1957 – artigo: “Ego States in Psychotherapy”
Berne já havia diferenciado a “pequena pessoa viva” da “gente grande” na estrutura da personalidade. Nesse artigo ele passa então a diferenciar dois tipos de “gente grande”: um autônomo e outro copiado dos pais. O copiado dos pais constitui um tipo de pensamento predeterminado por gerações (uma, duas, três ou até quatro), ficando assim diferenciado de um pensamento com oportunidade contínua para atualização, parecido a um computador.
Nesse artigo Berne utilizou o termo “estado de ego” para essas diferentes realidades psicológicas. A “pequena pessoa viva” ele chamou de estado de ego Criança, a “gente grande” autônoma, ele chamou de estado de ego Adulto, a do tipo predeterminada por gerações ele chamou de estado de ego Pai.
O psicanalista Federn, já havia constatado que o psiquismo opera segundo duas entidades completas e separadas, às quais chamou de estados de ego. Dizia ele que o estado de ego caracteriza-se pela sensação ou vivência que provoca no indivíduo. Desse modo, afirmava que estado de ego é aquilo que o indivíduo sente. Desse mesmo modo Berne afirma que quando o seu cliente sente-se um menino pequeno, ele está no estado de ego Criança. Ao passo quando ele se sente um advogado, ele está no estado de ego Adulto.
Federn dizia ainda, que existem inúmeros estados de ego em cada uma das duas entidades. Afirma que ao longo da vida de uma criança em desenvolvimento, pode surgir um novo estado de ego e fixar-se.
Weiss, discípulo de Federn, sistematizou a teoria de seu mestre. Weiss referia-se a três estados de ego:
a) Uma espécie de ego criança que vem à tona quando provocado pelos acontecimentos;
b) Um estado de ego “corrente”;
c) um estado de ego em que se faz notar a imagem mental de um outro ego, às vezes parental, que influi no comportamento e nas emoções dos indivíduos. Weiss chamou essa imagem de “presença psíquica”.
Berne também descreve a existência de três estados de ego, Pai (presença psíquica), Adulto (estado de ego corrente) e Criança. Passa a introduzir ainda um diagrama de três círculos para ilustra-los.
1958 – Em um artigo publicado nesse ano Berne propõe um método novo de terapia de grupo, com base na abordagem de estados de ego. Chama esse método de Análise Transacional.