Os Modelos de Estados de Ego Descritos por Eric Berne

Os Modelos de Estados de Ego Descritos por Eric Berne

Por José Silveira Passos

Segundo Eric Berne (ATP), “um estado do Ego pode ser descrito fenomenologicamente como um sistema coerente de sentimentos relacionados a um dado sujeito e operacionalmente como um conjunto de padrões coerentes de comportamento ou, ainda, do ponto de vista pragmático, como um sistema de sentimentos que motiva um conjunto de padrões de comportamento afins”, p. 17.

Berne descreve a estrutura da personalidade como sendo formada pelos estados de Ego. O termo “estados de Ego” tem como propósito designar estados da mente relacionados aos respectivos padrões de comportamento, evitando, em princípio, o uso de termos como: “instinto”, “cultura”, “superego”, “animus”, etc.

O autor, na busca de um quadro de referência para a classificação dos estados de Ego, descobriu em suas observações clínicas que os estados de Ego infantis permaneciam no adulto (como relíquia, diz Berne). Estas relíquias, sob certas circunstâncias, podiam ser revividas através de sonhos, hipnose, com o uso de farmacológicos, estimulação direta do córtex temporal, etc.

Através de suas observações cuidadosas, Berne verificou que estas relíquias poderiam ser observadas em estado normal de vigília. Isto podia ser verificado quando o paciente passava de um estado mental e de um padrão de conduta a outro. Havia um estado de Ego que se caracterizava pela avaliação da realidade e um reconhecimento racional bastante adequado, ligados a um processo secundário, que corresponde a uma maneira de agir usual de adultos responsáveis. Havia também um outro estado de Ego, verificado através de pensamentos autistas, medos arcaicos e expectativas, ligados a um processo primário, que corresponde a uma maneira de agir de uma criança pequena.

Isto levou Berne a supor a existência de dois órgãos psíquicos: uma Neopsiquê e uma Arqueopsiquê. Ele chamou as manifestações fenomenológicas e operacionais desses dois órgãos psíquicos de Adulto e Criança.

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O autor descreve (ATP) o caso de sua paciente, Mrs. Primus, onde sua Criança manifestava-se de duas maneiras diferentes. Na ausência de estímulos, a Criança que aparecia era a menina “má”. Nestes momentos,seria difícil conceber que Mrs. Primus poderia assumir responsabilidades de uma mulher madura, pois seu comportamento era tão semelhante ao de uma menina, que poderia ser classificado como arcaico. Já em outros momentos, ela desviava-se para um estado de Ego de “boa” menina em obediência a uma voz provavelmente do exterior, que também poderia ser classificada como arcaica devido à semelhança à de uma menina em tenra idade.

Estes dois estados de Ego diferenciavam-se em termos de um ser a “má” menina – indulgente em suas expressões, mais ou menos autônomas – , enquanto a outra, a menina “boa”, estava sendo punida e por isso procurava se adaptar ao fato. Esses dois estados de Ego (o natural e o adaptado) eram manifestações da Arqueopsiquê, sendo assim manifestações da Criança.

A mudança para um sistema diferente foi provocada pela intervenção do terapeuta, assim afirma Berne. Esta mudança podia ser verificada em seu comportamento, na sua capacidade de respostas, em seu senso de realidade, em seu modo de pensar, em sua postura e expressão facial, bem como em sua voz e tônus muscular. Este desvio era observado à medida que o estado de Ego Adulto era reativado.

Neste ponto, houve uma breve remissão da psicose de Mrs. Primus, afirma o autor. A paciente em seu estado alucinatório, ouvia vozes que estava utilizando a linguagem do pai da paciente. Logo, esta voz pertencia ao Exteropsiquê (sistema parental). Esta voz não era a “voz de seu superego”, mas sim a voz de uma pessoa real.

Baseado nestas observações, Berne (ATP) afirma: “Isto enfatiza o ponto de que Pai, Adulto e Criança representam pessoas reais que existem agora ou que já existiram, e que têm nomes legais e identidades cívicas” p. 30.

Berne ilustra a atividade do Pai com o seu paciente, Mr. Segundo, que estimulou o seu trabalho para a evolução da análise estrutural: o menino vaqueiro. Caso este, que julgo não ser necessário descrever aqui, devido sua popularidade em nosso meio, através do qual demonstra com clareza que Pai, Adulto e Criança se referem a fenômenos baseados em realidades concretas.

Berne, explica as razões pelas quais os modelos de estados de Ego foram chamados de Pai, Adulto e Criança: Criança, porque o próprio paciente roubava goma de mascar quando criança. Adulto, porque manejava com eficiência a realidade através de suas operações legais e financeiras. Pai, porque praticava suas atividades filantrópicas com o mesmo espírito de seu pai.

Berne (ATP) apresenta os diagramas dos órgãos psíquicos com os respectivos estados do Ego:

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Na figura (a) estão representados os órgãos psíquicos, os quais se manifestam fenomenologicamente e operacionalmente através dos três estados de Ego correspondentes, conforme representados na figura (b). Ou seja, os estados do Ego são manifestações dos órgãos psíquicos:

Estado do Ego Pai – Manifestação da Exteropsiquê;
Estado do Ego Adulto – Manifestação da Neopsiquê; e
Estado do Ego Criança – Manifestação da Arqueopsiquê.

Berne diz, ainda, que um estado do Ego é a manifestação fenomenológica e comportamental da atividade de um certo órgão psíquico, ou organizador.

O autor fala em três instâncias:

Fenômenos – Estados do Ego (Pai, Adulto e Criança);
Organizadores – Órgãos Psíquicos – Exteropsiquê, Neopsiquê e Arqueopsiquê;
Determinantes – São os fatores que determinam a qualidade da organização e dos fenômenos, isto é, estabelecem a sua programação.
A programação é provida por três forças:

Interna – Forças biológicas naturais, que podem influenciar qualquer dos organizadores e, portanto, podem influenciar também os fenômenos;

Probabilística – Processamento de dados autônomos, baseado na experiência passada;

Externa – Cânones externos incorporados.
Cada organizador tem duas funções independentes: uma se destina a organizar os determinantes e transformá-los em influências efetivas; a outra, a organizar os fenômenos.

A Arqueopsiquê organiza a programação interna; a Neopsiquê, a programação de probabilidade; e a Exteropsiquê, a programação externa.

Berne comenta que o id assemelha-se à “programação interna”, o superego é um reservatório para influências exteropsíquicas e o Ego é como um instrumento que assemelha-se a um computador de probabilidades auto-programado com características especiais, que é o modelo de programação neopsíquica.

O autor comenta, ainda, que Freud não levanta nenhuma questão de fenomenologia sistemática quando define o id, o Ego e o superego e é, neste sentido, que a análise estrutural pode preencher satisfatoriamente um vazio na teoria psicológica. Buscando mostrar como esta teoria pode ser aplica à prática terapêutica, vejamos a seguir um exemplo clínico.

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Cliente do sexo feminino, 26 anos, solteira.

Em sessões anteriores, obtive da cliente as seguintes informações: seu pai é administrador (52 anos) e está desempregado há 4 anos; ela e a sua mãe sustentam a casa; tem uma irmã de 17 anos que tem uma filha de 1 ano de idade, cujo pai biológico (da criança) não quis assumir a paternidade de fato. Às vezes fica desesperada quando está em casa, pois seu pai briga com sua irmã e sua mãe fica furiosa em virtude do pai não estar trabalhando. Quando vai para o seu quarto estudar não tem “sossego”, pois sua sobrinha começa a chorar, segundo ela, devido ao barulho dentro de casa…

Disse que às vezes tem vontade de sair e não voltar mais. Perguntei o que significava “sair e não voltar mais”. Respondeu que significava morar em outro lugar… Mas que não tinha para onde ir. Não podia alugar um apartamento ou mesmo um quarto, pois ganha pouco e além do mais tem que ajudar com as despesas de casa.

A cliente disse também que estava com medo de ser despedida de seu emprego, pois a firma em que trabalha é prestadora de serviços para outra firma e seu contrato estava terminando e não sabia se seria renovado. Disse que está se preparando para fazer vestibular no final do ano e que é muito difícil passar, porque quase não tem tempo para estudar. Sai de manhã para o trabalho, à noite vai para o curso. Quando chega em casa, ainda vai preparar uns salgadinhos para vender no seu trabalho para ganhar um “dinheirinho” extra.

Fica muito chateada com tudo isto. Acrescentou que às vezes não tem dinheiro nem para pagar a passagem para ir para o trabalho. Quando chega no final de semana, ainda tem que ajudar em casa, por isso está sem tempo para estudar. Seu pai é muito explosivo, qualquer coisa ele briga (por isto não pára em nenhum emprego). Ela disse também que quando começou a trabalhar brigava muito com o seu chefe, pois ele era muito mandão.

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Partes da quarta sessão de terapia:

Cliente – Todos os namorados que arrumo não me querem. Faço de tudo para eles gostarem de mim, mas não há jeito… Sou mesmo sem sorte com os namorados.
Eu – Quantos namorados você já teve?
Cliente – Este último foi o terceiro.
Eu – O que aconteceu?
Cliente – Ele não ligava para mim. Marcava para sair, eu ficava esperando… ele ia jogar bola ou saía com os seus amigos.
Eu – O que você fazia quando ele não aparecia?
Cliente – Eu ficava triste… Ficava em casa…
Eu – Como você ficava sabendo que ele ia jogar bola ou saía com os seus amigos?
Cliente – Minha amiga, que trabalha na mesma firma que eu, é vizinha dele e me contava. Era ela quem combinava os encontros, pois não tenho telefone e ele também não tem.
Eu – Quantas vezes vocês se encontraram?
Cliente – Umas 4 vezes. Fomos ao cinema, depois fomos tomar lanche…
Eu – Vocês terminaram o namoro?
Cliente – Na verdade nós não terminamos. Ele simplesmente não aparece mais… (pausa) É… eu me apego muito facilmente às pessoas.
Eu – Como assim, apega facilmente às pessoas?
Cliente – Fico gostando muito delas, faço tudo para que elas gostem de mim.
Eu – O que você faz para que elas gostem de você?
Cliente – Procuro agradar, não magoar a pessoa… (pausa).
Eu – A quem, na sua família, você tem que agradar?
Cliente – (Pausa longa) Acho que é a minha mãe.
Eu – Como você agrada a sua mãe?
Cliente – Procuro não magoá-la… Sendo boa com ela… ajudando ela…
Eu – O que acontece se você não for boa com a sua mãe?
Cliente – Ela vai ficar triste comigo.
Eu – O que acontece se ela ficar triste com você?
Cliente – Eu vou me sentir culpada?
Eu – Culpada de quê?
Cliente – De ter feito ela ficar triste.
Eu – Acontece com freqüência, sua mãe ficar triste com você e você se sentir culpada?
Cliente – Não com muita freqüência, pois eu evito aborrecê-la… (pausa… olhos lacrimejando).

Baseando-me em informações anteriores e aproveitando o momento, prossegui:

Eu – Estou percebendo que parece que você sofre quando isto acontece… é verdade?
Cliente – É verdade… sofro muito com isto.
Eu – Parece-me que você gosta de sofrer… É verdade?
Cliente – Claro que não. Quem é que gosta de sofrer?
Eu – Parece-me que você gosta!
Cliente – Mais eu não gosto não! (pausa longa).
Eu – Você diz que sofre quando sua mãe fica triste, parece que sofre quando sua mãe e seu pai brigam, sofre pela possibilidade de ser mandada embora do emprego, sofre por ter que dormir tarde quando vai fazer salgadinhos para vender, sofre porque não tem tempo de estudar, sofre porque o namorado não liga para você… UFA!!! Como gosta de sofrer! Parece-me que se você achar uma carteira cheia de dinheiro vai ficar sofrendo sem saber o que fazer!
Cliente – Pior… que é isso mesmo!

Neste momento a cliente ficou em silêncio e pensativa olhando para mim. Continuei olhando para ela e prossegui:

Eu – O que você acha disso?
Cliente – Eu não tinha percebido isso… É estranho eu ficar sofrendo por essas coisas todas… (pausa). Agora me lembro… quando estou trabalhando e alguma coisa não está dando certo, fico ansiosa, nervosa… sofrendo (pausa).
Eu – Proponho que você faça um contrato a esse respeito. Você está de acordo?
Cliente – Sim.
Eu – O que você propõe?

Após alguns minutos de conversa estabelecemos um contrato visando parar de sofrer.

Cliente – Mais e se eu não conseguir cumprir esse contrato? Acho que vai ser difícil parar assim, pois estou muito acostumada com isto… (pausa). Chi… (levou a mão à cabeça). Estou eu sofrendo de novo… (deu uma gargalhada).

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Comentários:

O processo primário pode ser observado através de seus medos e expectativas correspondentes a uma maneira de agir de uma criança pequena: agradar as pessoas para não magoá-las. É provável que quando criança tenha sido manipulada pela mãe com medo e culpa. Este estado de Ego arcaico (aparece hoje como relíquia, na fala berniana) é a manifestação da Arqueopsiquê (estado de Ego Criança). Aparece ainda o processo secundário, observado através de sua maneira de agir diante de sua realidade financeira (trabalha, vende salgadinhos para completar sua renda, estuda, etc.) é a manifestação de sua Neopsiquê (estado de Ego Adulto).

A atividade da Exteropsiquê (estado de Ego Pai) aparece em seu comportamento de brigar com o chefe (pois ele era muito mandão) parecido com a maneira de agir de seu pai (muito explosivo).
Percebe-se o conflito que está vivendo: por um lado acredita que não é suficientemente boa (não tem sorte), pois nenhum namorado fica com ela, apesar de fazer de tudo para agradá-los. Por outro lado, faz de tudo para agradar e não magoar a mãe, inclusive ajuda a sustentar a casa, enquanto o pai está desempregado (há quatro anos!!). Sua Criança busca agradar as pessoas para ser aceita, mas não consegue êxito.

Seu estado de Ego Adulto está relativamente catexado (pois trabalha, busca alternativas para complementar o salário, estuda, etc.). Faz isto às custas de muitos sacrifícios de sua Criança Livre. Seu estado de Ego Pai não está suficientemente potente para se proteger, quando, por exemplo, decidir com seu Adulto tomar providências quanto ao aspecto da busca de espaço para estudar ou descansar quando estiver em casa, etc. Até a decisão de marcar os encontros com o namorado (sua amiga é quem fazia) é indicativo de que sua Criança Adaptada Submissa (CAS) está acuada com todas as circunstâncias do ambiente familiar em que vive.

Quando confrontei a cliente quanto ao “gostar de sofrer”, meu objetivo foi desconsertar seus estados de Ego Pai, Criança e o seu Adulto contaminado, com a finalidade de facilitar a sua percepção de uma incongruência mantida através do seu comportamento.
O contrato elaborado teve como propósito direcionar e manter os rumos do trabalho terapêutico, que, naquele momento, estava sendo direcionado a elevar a sua autonomia, ou seja, desenvolver suas habilidades de autoproteger-se (Pai), autoabastecer-se (Adulto) e autorealizar-se (Criança), sem colocar em jogo sua auto-estima com o contexto externo, uma vez que o processo patológico dela está centrado no TER e no FAZER em detrimento do SER. Aqui estou agregando os aspectos da teoria da Ecologia Humana, criada pelo Dr. Juan José Tapia (Viva Bine… o Muares!).

No final da sessão de terapia, houve indícios de que a Confrontação (uma das Oito Operação terapêutica de Berne) foi bem sucedida, pois em determinado momento a cliente ficou em silêncio e pensativa, sinal de que provavelmente estava refletindo a respeito do que acabara de perceber. Outro sinal de demonstração de entendimento foi quando se deu conta de que estava novamente repetindo o mesmo comportamento de sofrer com a possibilidade de não conseguir cumprir o contrato.

Descrevi aqui o uso e manejo da operação terapêutica de Berne (Introducción al Tratamiento de Grupo), a Confrontação, com o objetivo tão somente de ater-se ao uso e manejo do conceito de estados de Ego.

Referências Bibliográficas:

1 – Berne, E., Análise Transacional em Psicoterapia, Summus Editorial, São Paulo, 1985.
2 – Berne, E., Introducción al Tratamiento de Grupo, Adiciones Grijalbo S.A., Barcelona – Buenos Aires – México – D. F.
3- Tapia, J. J., Viva Bine… o Muérase! Manual de Introducción a la Ecología Humana, Distribuidora y Editorial OKEIDAD, Capital Federal, Argentina, 1994.