Catexia e Organização Psíquica

Noeliza Lima
(Publicado em http://www.unat.com.br, seção artigos, junho de 2001 – revisado em 18/09/2004)

Resumo

Este é um artigo de revisão, em que se pretende colocar as raízes do conceito de catexia e seu significado posterior para a Análise Transacional Clássica. Pretende-se com isto auxiliar as pessoas que buscam entender este conceito. A palavra catexia teve sua origem nos estudos freudianos de motivação, instinto e impulso, evoluindo até nossos tempos, principalmente através de Berne e seus discípulos.

Através do tempo busca-se conhecer o ser humano em suas várias nuanças: produto de hereditariedade, produto do meio, agente de sua própria vida, determinado pela herança genética, etc. Entretanto, nada é mais apropriado do que o conhecimento da atuação do homem, enquanto sujeito de seu ser- no- mundo. Esta visão embora intitulada fenomenológica, tem a ver com a motivação humana, o sentido da vida. Para tal temos de nos reportar primeiramente aos escritos de Freud sobre os assuntos Instinto e Impulso. O instinto é uma capacidade ou necessidade inata de reagir a um conjunto determinado de estímulos – de uma forma estereotipada e constante. O instinto em um animal aparece como um tipo de comportamento mais complexo que o reflexo simples, como o reflexo patelar, por ex. É algo assim como uma excitação central, e uma resposta motora que segue um curso pré determinado.

No homem utiliza-se o termo impulso, que inclui a excitação central seguida de atividade motora, porém mediada pelo ‘ego’, ou seja, o pensamento. O instinto dos animais inferiores – ao ser mediada pela experiência e reflexão, e não sendo portanto pré determinada – recebe o nome de impulso.

Freud, ao estudar o atributo que têm os impulsos de impelir o homem à atividade, considerou-o análogo ao conceito de energia física, que se define como a capacidade de produzir trabalho. Assim Freud entendeu que uma parte dos impulsos pode ser considerada energia psíquica. Tanto a energia física como a psíquica são hipóteses, já que os estados de energização não são passíveis de medida. Portanto presume-se que há um quantum de energia psíquica com o qual uma determinada pessoa ou objeto estão investidos. A palavra que Freud escolheu para designar este conceito vem do alemão Besetzung, traduzido para o inglês por Cathexis – em português – Catexia. Segundo Terzis (2001), a catexia é nada mais que o desejo. Parece que a motivação inerente ao ser humano possui um continuum de força – que se torna perceptível em suas ações.

Berne (1953) iniciou seus estudos mais aprofundados de catexia a partir dos experimentos de Penfield, a respeito da possibilidade de se vivenciar, mediante eletrodos colocados em determinadas regiões do cérebro, situações de infância, com consciência completa.

A partir destes estudos, acrescidos de trabalhos de Federn e e Weiss, psicanalistas, chegou às conclusões que serão aqui relatadas, com o objetivo de compreender a organização psíquica e suas variantes em termos de normalidade.

Estrutura Psíquica

Eric Berne considerou o Ego como um sistema formado por instâncias psíquicas : exteropsique, (Pai), neopsique (Adulto) e arquipsique (Criança), cada qual com seu conjunto de pensamentos, sentimentos e comportamentos com os quais interagimos com outras pessoas. Os estados de ego Pai, Adulto e Criança, e a interação entre eles, formam a base da teoria da Análise Transacional. Berne considerava fundamental que seus pacientes entendessem tudo que se falava a respeito deles, a fim de estabelecer uma relação próxima, ou seja, de okeidade, eliminando o analista como ‘sujeito suposto saber’. Daí a representação gráfica e didática dos instrumentos que utilizava para compor seu método de trabalho.

Comentário: Reveja o conceito em Patologias dos Estados de Ego.

Catexia

Berne escreveu que a Catexia é a energia psíquica, indispensável para o movimento psíquico. Adicionou que esta se apresenta em 3 formas: Catexia atada, desatada e livre. Na verdade a Catexia é a mesma, o que mudam são os impulsos (que sofrem interferência de – história de vida, situação fisiológica da pessoa no momento, expectativas e mecanismos de defesa) e estímulos externos à pessoa – que determinarão em que estado de ego a desatada e a livre vão estar.

Existe uma soma de Catexia atada em cada estado de ego. Se a esta catexia atada se junta a desatada (determinada histórica e fisicamente), aquele estado de ego terá o poder executivo, o poder de atuação. Se a catexia desatada e livre estão no mesmo estado de ego, a pessoa sente uma sintonia, um estar bem, que seria o Self (que aglutina o ser, o estar e o fazer – através do desejo).

Ex: A pessoa que come compulsivamente tem o poder executivo na Criança (catexia atada + desatada) e quando está assaltando a geladeira, sente-se ela mesma (catexia atada + desatada + livre), portanto o comportamento de comer é ego sintônico. Quando esta pessoa vai ao médico e demonstra interesse em mudar seus hábitos, o poder executivo muda para o Adulto, e ela se sente bem e firme em sua decisão. Em sua casa, porém, ao ser assaltada por desejos de comer, sente-se conflitada, ou seja: sente necessidade de comer (catexia livre na Criança) mas o Adulto comanda o comportamento de controlar-se (poder executivo). Desta forma seu comportamento é ego distônico, visto que o poder executivo (atada + desatada) está em um estado de ego e o sentimento de ‘verdadeiro eu’ (livre) em outro. Portanto neste caso, o Self não se manifesta por inteiro, há divisão ente A e C, o que chamamos de ego distônico.

Em casos de psicoterapia, quando a pessoa começa a assumir a responsabilidade por seus atos, ou a aprender sobre si mesma, dá -se conta de que alguns comportamentos que exibe são ego sintonicos, e outros ego distonicos.

No caso relatado, podemos inferir que o estado de ego Pai não tem força suficiente para segurar a criança descontroladamente faminta, e nem é capaz de estimulá-la a novas condutas mais saudáveis. Sua auto estima é baixa, ao não conseguir o autocontrole (resultado de um ego Pai que não qualifica) , e faltam-lhe informações de qual técnica utilizar para conseguir o equilíbrio catéxico, e a dieta nutricional mais adequada (podem existir muitas formas de se controlar a alimentação, mas a eficácia delas varia de pessoa para pessoa). Ao se analisar a catexia desta pessoa, verificamos que a Criança comumente assume o controle, frente a um Pai desestimulante e fraco, e um Adulto pouco informado. Segundo Berne (Sexo e Amor) o tripé do relacionamento consiste em respeito, confiança e amor. Segundo estudos, parece que semr espeito não há autoridade, então um Pai exageradamente crítico, assim como um Pai superprotetor, em pais e mães, desestimulam o respeito nos filhos.

O tratamento exige a parentalização, ou seja, levar a pessoa a reprogramar seu próprio ego pai com o objetivo de se dar estímulo, afeto e interesse, e fortalecer seu Adulto. Há que se estabelecer necessidades reais de sua Criança, que estão sendo substituídas por uma conduta destrutiva.

Acerca da Compulsão

A compulsão, uma dificuldade de caráter neurótico, é também encontrada em pessoas com TOC (transtorno obsessivo compulsivo). São muitos os sintomas desta síndroma, tais como: comportamento excessivamente organizado, comandado por rituais (do ego pai, executados pelo ego criança), nível alto de exigência externa e interna (ego pai). Parece que a fantasia implícita (da Criança – pensamento mágico em A1) é :’se eu me comportar direitinho, nada de mal irá acontecer’. Esta frase delata uma Criança assustada, um Pai rígido e pouco nutritivo (incapaz de sossegar a Criança), e um Adulto pouco catexizado. O sujeito cria uma série de alternativas para que uma desgraça não aconteça, utilizando o A1 (Adulto na Criança – utilize diagrama de ego acima figura acima). A pessoa realmente acredita que se fizer esta série de coisas, tudo irá bem. Assim, vemos também uma patologia estrutural – a contaminação do A pela C.

Como patologia funcional, ao ser arrastado pelas fantasias da Criança (de que algo ruim irá acontecer) e pelas soluções mágicas de A1(na análise funcional corresponde ao pequeno professor, ou adulto da criança) que impediriam o tal acontecimento (ex.: quando eu …me formar, casar, tiver filhos, tiver dinheiro, e/ou etc) – temos então a catexia de baixa viscosidade entre Adulto e Criança.

Quando o sujeito se deixa arrastar por compulsões há um descomissionamento do Adulto, também patologia funcional, (que significa – retirada grande de catexia ),

Neste caso a Criança assume o controle do ego, de tal forma que o sujeito fica a mercê de um Pai raivoso que assusta a Criança a ponto dela ver e ouvir coisas estranhas (alucinação: alteração perceptiva), e pensar coisas sem lógica (alteração de pensamento). Ex. de delírios: as manias – de perseguição, de grandeza, etc. De alucinações: ‘Um demônio fica falando no meu ouvido – ‘mata sua mãe, mata!’ (exemplo verídico).

Enquanto na contaminação há alterações de pensamento mais leves, como a superstição, por ex., na exclusão o pensamento é realmente alterado, já que o Adulto está sem função. Ambas são consideradas patologias estruturais, já que envolvem alterações do conteúdo cognitivo (percepção e pensamento).

Psicose Ativa

Quando o ego criança detém o poder de catexia, como mostramos na figura acima, falamos de psicose ativa. Tudo o que ocorre é processado pela Criança, de tal forma que não se consegue chegar ao Adulto.. O terapeuta se sente como que ‘querendo mandar mensagens a um grupo de gente grande através de uma criança aturdida’ (Berne, AT em Psicoterapia, versão argentina, Pag. 146) A eficácia em fazer chegar a mensagem ao Adulto depende dos sentimentos da Criança, ou seja, se ela é hostil ou não. Algumas psicoses não cedem a psicoterapia, pois o Adulto do paciente, ao ser intermediado por uma Criança hostil e assustada, fica fora de alcance.

Nas psicoses tóxicas é praticamente impossível falar com o paciente, daí a necessidade da sedação. No TOC (Transtorno Obsessivo – Compulsivo) a Criança está assustada mas freqüentemente confia no terapeuta, que vê como o Salvador, o herói que irá tirá-la de seu contínuo sofrimento. Aí é possível aos poucos um trabalho de parentalização (sossegar a criança e protegê-la das idéias delirantes, tais como ‘empurrar a avó da escada ‘ – Sic.), e descontaminação (o Adulto do terapeuta busca atingir o Adulto do paciente, a fim de alterar as idéias fantasiosas). Aos poucos o Adulto do paciente consegue tomar o controle, a ponto da pessoa saber quando se sente compelida aos rituais obsessivos (rituais repetitivos, com caráter de compulsão, como lavar as mãos, rachar madeira, dar voltas no quarteirão, andar nos quadradinhos da calçada, etc.). Parece que estes rituais se estabelecem por produzirem um certo sossego a um estado de ego Criança , assustado, que teme destruir alguém. Por pensamento mágico (A1) se estabelece um condicionamento no qual se crê que ao fazer determinadas coisas, livra-se do mal. Quando o paciente relata estas coisas que não entende (o ego adulto não vê lógica, mas a Criança se alivia com isto e aceita a conduta – ego distonico), fala também de sua depressão, e pode colocar o suicídio como forma de sair disto. Na verdade, fantasias de destruição de alguém que se ama, e rituais que se faz para livrar-se do temor e da culpa – revelam o quanto a Criança tem o poder executivo nestes transtornos, com pensamentos intrusivos no ego adulto. Assim, o sujeito vive em busca de soluções para seus problemas. Daí talvez fosse interessante a revisão do placebo médico, ou técnicas sugestivas de cura, tais como as emprestados da Análise Funcional de Comportamento (amuletos, balas, que podem fazer baixar a escala de ansiedade e melhorar a discriminação) – estas técnicas são utilizadas para dessensibilização de fobias e são formas de descontaminação.

Existem quatro regras importante ao se abordar um paciente psicótico:

O contato deve ser feito em períodos de confusão mínima. Não se deve fazer nenhum movimento psicoterápico até que o paciente tenha tido oportunidade de avaliar o terapeuta, e deve-se dar tempo para que isto ocorra.

Por isto vemos em filmes a atitude as vezes passiva do médico, ao lado do paciente, sem falar nada. Em Uma Janela para a Lua (filme de vídeo), freqüentemente a atitude das pessoas que lidam com os doentes é de espera. Em Um Estranho no Ninho já há intervenção maior de medicação (suspeitando-se aí de psicose ativa e de que os estados de ego Criança dos pacientes estarem hostis e confusos) e repressão de condutas (este filme contém uma crítica forte ao comportamento de contenção dura utilizada na época nos hospitais psiquiátricos – antipsiquiatria).

Quando o paciente não se sente bem com determinado terapeuta ou médico convém trocar de profissional.

Isto pode querer dizer que o paciente não se sente seguro o suficiente para ser contido.

É necessário que haja uma atitude propícia a diálogo por parte do paciente, a Criança deve se sentir bem.

Relaxar-se, de tal modo que o poder executivo (catexia atada + desatada +livre) da Criança ceda ao Pai e Adulto do profissional. Na clínica Eric Berne (1981) eram parte do tratamento a biodanza, jogos de futebol, brinquedos, a fim de se obter o máximo de relaxamento físico e mental. Deixar primeiro que a Criança do paciente trabalhe, ou seja, deixar o controle ao paciente. O paciente escolhe ligar-se, e a quem, não o contrário. O avanço inicial até o Adulto deve ser feito por meio da linguagem do Adulto, de forma firme, bem espaçada, objetiva, com sentenças curtas.

Como o senso de ‘timing’ por parte do terapeuta é adquirido com a experiência, é possível o surgimento no meio da quarta fase – de comportamentos hostis repentinos, tais como agressividade física por parte do paciente. Aí esquivar-se e depois dizer no Adulto o que aconteceu é eficaz.

Em uma psicose ativa o Adulto do paciente carece de catexia, então o terapeuta funcionará a princípio como Pai suplente (sossegando a Criança do mesmo) e depois como Adulto suplente, fortalecendo as fronteiras entre Criança e Adulto.

Psicose Latente

Dizemos que há uma psicose latente quando a catexia da Criança é defeituosa. Pode ser de alta viscosidade, de tal forma que fica retida na Criança uma maior quantidade do que deveria (catexia atada), talvez por problemas de fronteira e/ou contaminação do Adulto pela Criança. De toda forma o que se verifica é que neste paciente a Criança assume em alguns momentos o controle, ficando o Adulto relegado, sem poder executivo.

O tratamento das psicoses latentes também exige muita habilidade do terapeuta:

– há que se realinhar as fronteiras entre Criança e Adulto.

– se o Pai está em catexia muito carregada (pai extremamente crítico), como nos casos maníaco depressivos (depressão bipolar, antiga psicose maníaco depressiva, ou psicose), o médico, e o Adulto do paciente têm como tarefa aparar os golpes tanto da Criança como do Pai do paciente, já que ambos se digladiam todo o tempo. A alta concentração de catexia no Pai refere-se também ao pai superprotetor, o qual também pode influenciar na formação de condutas passivas, e o paciente pode manifestar sintomas de alienação, por falta de uso do Adulto e pela presença da Criança atormentada.

Isto parece ocorrer também em casos de depressão (mesmo não psicótica) em que a Criança do paciente está impotente devido ou a um Pai ausente, ou a um Pai Intransigente e pouco amoroso. Neste caso a Criança desautoriza o Pai ou se pune para atingir o Pai (tentativa de ‘acordar’ o ego pai, para cuidar efetivamente dela, ou mimá-la) . No caso de um ego pai superprotetor, o paciente desvaloriza seu Adulto, e o analista transacional tem a opção de super okness: convidá-lo a pensar, não sem antes desconfundir a Criança.

Discussão

Parece claro que a distancia entre normal e patológico é mais tênue do que se considera, ou seja, a linha divisória entre neurose e psicose é difícil de ser avaliada. O psicólogo conta com entrevistas, testes importantes (como os testes projetivos) com alto poder diagnóstico. O teste viso motor Bender, apesar de utilizado com crianças e adolescentes possui um índice alto de fidedignidade e validade na verificação de lesões ou disritmias, se for utilizada, além de avaliação qualitativa, também a observação dos comportamentos que o paciente demonstra em sua aplicação (encontra-se em revisão pelo Conselho Federal de Psicologia).

Outro fato que emerge nesta discussão é que a avaliação sintomática e o diagnóstico da doença têm tanta utilidade psicoterápica como o estudo psicodinamico de distribuição de catexia. Claro que o médico utiliza e com bom senso a medicação, a fim de aliviar o acúmulo de catexia na Criança, demonstrada por dificuldades da cognição, e pelas condutas passivas (violência, agitação, incapacitação – comumente presentes na depressão). Mas depois de se sossegar a Criança do paciente, o aclaramento das fronteiras e descontaminação do Adulto é o objetivo a ser perseguido, em neuróticos, e em psicóticos. Acredita-se que o trabalho com a catexia é o grande achado de Eric Berne no tratamento da mente e vida relacional.

Os conceitos podem ser utilizados também na preparação da saída de hospitais, também pela família, para que se usem modelos positivos de conduta, e a auto parentalização do paciente (utilização do Adulto suplente, segundo Dusay) e de toda a família.

Referências Bibliográficas

BERNE, E.. Intuition and Ego States, San Francisco, Transactional Publications (ITAA), 1977.

__________ Análisis Transaccional em Psicoterapia, Buenos Aires, Psique, 1ª edição.

BRENNER, C., Noções Básicas de Psicanálise, São Paulo, Imago, 1987

DUSAY, J., Egogram, 1988 / www.unat.com.br (em portugues)

LIMA, N. Estudos clínicos com pacientes, mimeo, 2001 e 2004.

________ Aulas da disciplina Teorias e Sistemas em Psicologia, FAE, mimeo, 2001.

TERZIS, A., LIMA, N., AUSTREGÉSILO, H. Mesa redonda ‘Catexia’, XIV Congresso Brasileiro de Análise

Transacional, Hotel Porto do Sol, Vitória, [disponível em vídeo VHS], 2001.

Citações dos filmes em vídeo: Uma Janela Para a Lua e Estranho no Ninho

· Noeliza Lima é psicóloga, Especialista em Psicologia Clínica (PUC-Campinas, 1977), Mestre em Psicologia Clínica (PUC-Campinas, 2000), Didata em Análise Transacional da ITAA-USA e professora universitária.
Contato: ngroupsy@yahoo.com.br Website: www.geocities.com/noelizalima