Disfarce segundo Berne, comparação e contrastes dos enfoques de outros autores.
Por José Silveira Passos
O desenvolvimento do conceito de Disfarce tem início com Berne (Tradind Stamps, T. A. Bulletin, v.3, n. 10, p. 127, Apr. 1964, in: Curso Avançado de AT de Base Psicanalítica), quando pela primeira vez se referiu a “Rackets” como sentimentos, consequentemente estava se referindo a máscaras. Posteriormente Berne (Introducción al Tratamento de Grupo, Glossário – Chantaje), define “Rackets” como sendo “a sexualização e exploração transacional de sentimentos desagradáveis”, p. 403. Nessa definição estava referindo-se à chantagem emocional. Na mesma obra referiu ao comodismo de ter sentimentos de culpa, inadequação, mágoa, medo e ressentimento chama-se, coloquialmente, de “racket”, e sentenciou: “Este comodismo ocorre com maior probabilidade quando determinados sentimentos desagradáveis se tornam sexualizados”. O autor, porém, não especificou com clareza a respeito da “sexualização de sentimentos desagradáveis e as conseqüentes máscaras e esquemas de chantagem emocional”.
Mais tarde Berne (Olá) volta a falar de “racket” como sendo o sentimento favorito aprendido na infância, através dos pais, que se transforma numa “espécie de reflexo condicionado” que poderá persistir pela vida afora. Assim Berne descreveu este condicionamento: a criança ao demonstrar os seus sentimentos naturais, estes são às vezes desqualificados ou censurados, com isso a criança aprende a reprimir tais sentimentos. Alguns sentimentos são, às vezes, aceitos, qualificados e reforçados, tornando-se assim uma espécie de “pau para toda a abra”. A criança passa a recorrer a esses sentimentos em qualquer situação, seja apropriado ou não. Esses sentimentos tem um caráter de exploração do ambiente, bem como mascarar o sentimento autêntico reprimido.
English (O Fator de Substituição – Disfarces e Sentimentos Reais, in: Prêmios Eric Berne) diz que “Disfarces são percepções estilizadas de sentimentos permitidos que foram bem recebidos no passado. Eles são expressados cada vez que um sentimento real (ou de outra categoria) está para aparecer”, p. 99. A autora diz ainda que a substituição ocorre em virtude do indivíduo ter sido treinado para não se conscientizar de determinados sentimentos e percepções que foram proibidos no passado.
Ernest ( O Curral OK, in: Prêmios Eric Berne), definiu “racket” fenomenológica, operacional e pragmaticamente. Segundo o autor, fenomenologicamente o “racket” é uma emoção repetitiva e tem características intimidadoras, fraudulentas e coercitivas que propicia a rendição da vítima. Operacionalmente, ele é a demonstração repetitiva de emoções, sem autenticidade e que impede o aparecimento de outras manifestações emotivas. O “racket” tem a característica de vitimizar as pessoas, pois as restringem em duas opções: ou “contracenam” ou evitam, fugindo da situação. Pragmaticamente o “racket” é uma demonstração de emoções que lança uma carga sobre outra pessoa.
Holloway ( in: Karacushansky, Curso Avançado de AT de Base Psicanalítica) diz que quando sentimentos desagradáveis são criados pela criança para poder satisfazer os seus desejos, o esquema subjacente de exploração é identificado como “racket” . O autor diferencia “racket” de “recketty feeling”. Para ele “racket” é o esquema subjacente de exploração e chantagem, enquanto “racketty feeling” é o sentimento que aparece em substituição ao real.
O autor afirma que os disfarces tem três origens diferentes:
1 – Impotência – Está ligada à incapacidade da criança de satisfazer as suas próprias necessidades;
2 – Frustração – Está ligada à frustração sofrida pela criança na tentativa de satisfazer suas necessidades; e
3 – Impotência e Frustração – Ligada à combinação das duas anteriores.
Afirma também, que os disfarces que tem origem da impotência são do tipo depressivo e envolve sentimentos de tristeza, apatia e inadequação; os disfarces que tem origem da frustração são do tipo ressentimento e envolve sentimentos de raiva, medo e culpa; e os que tem origem da impotência e da frustração são do tipo confusão.
As diferentes conotações que Berne deu ao conceituar “Rackets” pode nos levar a duas interpretações: uma tomando o “racket” como sentimento; e outra como chantagem ou exploração de sentimentos. Devemos atentar ainda que a palavra “racket” literalmente tem o significado de chantagem emocional.
A partir dessas possibilidades de interpretação, outros autores, depois de Berne, desenvolveram conceitos, até certo ponto, diferentes sobre “rackets”. English (O Fator de Substituição – Disfarces e Sentimentos Reais, in: Prêmios Eric Berne) afirma que o disfarce é emoção, porém é um tipo de emoção diferente daquela que está sendo sentida e chama isto de “Fator de Substituição” dos disfarces. A autora afirma que é por este motivo “que os disfarces são tão tenazes embora haja confrontação”, p. 99. Afirma também a autora que é por este motivo que os disfarces desaparecem quando o indivíduo toma consciência das percepções ou dos sentimentos reais que ele está suprimindo no aqui e agora. Este conceito vai além do conceito de Berne (Olá), pois a modelação se dá em etapas: consciência, expressão e ação, que são os aspectos distintos de percepção e sentimentos, sendo que as figuras parentais podem reprimir o sentimento em qualquer das três etapas acima.
Para Ernest ( O Curral OK, in: Prêmios Eric Berne) o disfarce surge da chantagem emocional com a finalidade de coerção do outro, provocando-o com “você não é OK para mim”. A outra pessoa responde a esta provocação na tentativa de provar que “eu sou OK para você”, porém não consegue. Portanto o objetivo da máscara é comprovar que o outro não é OK. Assim sendo o autor conclui que não pode haver disfarce nas PE ÑOK/OK e OK/OK, só existindo nas PE OK/ÑOK e ÑOK/ÑON.
Holloway (in: Karacushansky, Curso Avançado de AT de Base Psicanalítica), busca fazer um apanhado das descrições feitas pelos diversos autores e propõe a seguinte definição: ” Quando sentimentos desagradáveis são criados pela criança para poder satisfazer os seus desejos, o esquema subjacente de exploração é identificado como ‘ racket’ “.
O autor diz que o disfarce implica na fuga do presente, constituindo um sentimento incompreensível no aqui e agora. Por exemplo, se o indivíduo foge para o passado, o disfarce correspondente é de depressão, se para o futuro, o disfarce correspondente é de ansiedade. Parece que o autor quando diz que os “Rackets são esquemas subjacentes de exploração…” está de acordo com English. Quando fala de “Racketty Filling”, como sendo o sentimento que aparece em substituição ao real, parece que o autor está falando de conduta e emoção.
Em nossa prática clínica trabalhamos com disfarce de acordo com a abordagem de English. Consideramos importante descobrir em que nível o cliente suprimiu a emoção autêntica (consciência, expressão ou ação) como no exemplo prático a seguir.
Cliente do sexo feminino, 28 anos, solteira com um filho de 8 meses de idade. Queixa principal: medo de não conseguir criar o filho pequeno.
Chegou à terapia dizendo que estava se sentido muito mal. Sentou-se no sofá e ficou como que “prostrada”, cabisbaixa, ar de desamparo. O terapeuta perguntou o que estava sentido e ela respondeu que não sabia direito. Sabia que era algo ruim, uma sensação muito ruim.
O terapeuta pediu que entrasse em contato com que estava sentindo… Aos poucos foi incentivando para que aumentasse a sensação que estava sentindo… Em seguida incentivou-a para que deixasse fluir o que estava sentindo… Até que em dado momento caiu em pranto. Ou seja, procuramos levar a cliente a exacerbar o racket.
Enquanto chorava, dizia que estava se sentindo sozinha, não tinha ninguém com quem pudesse contar… Estava muito cansada de tudo… Não podia descansar…, etc.
Dizia que estava cansada de se cobrar. Acreditava não ser capaz de dar conta de criar o seu filho. Se sentia muito culpada por não conseguir que seu filho ficasse tranqüilo. Dizia que seu filho era muito agitado, dificilmente tem um momento de tranqüilidade ou de paz.
O pai de seu filho não quis mais ficar com ela quando soube que estava grávida. Agora teria que criar o filho sozinha. O terapeuta perguntou se alguém a cobrava quando era criança. Respondeu que sua mãe a cobrava o tempo todo. Perguntou se sua mãe estivesse viva, o que ela diria a respeito do que estava acontecendo com ela. Respondeu que certamente iria cobrá-la por ter sido mãe solteira e iria querer criar o seu filho, pois não acreditaria que ela fosse capaz disso. Perguntou o que ela achava disto. Após pensar um pouco disse que estava confusa com tudo isto.
Nesse ponto percebemos que a cliente usava uma séria de “rackets” para justificar que não era capaz, etc. Quando era criança sua mãe a cobrava de tudo e dizia que ela não era capaz.
O terapeuta continuou incentivando a cliente para deixar fluir o que estava sentido até que em determinado momento ficou séria olhando para para ele. O terapeuta perguntou o que estava sentindo. Respondeu que parecia estar com raiva de sua mãe. Logo em seguida voltou a chorar novamente.
O terapeuta pediu que colocasse a sua mãe, em sua frente, sentada em uma almofada. Disse que era impossível fazer isto, pois a sua mãe jamais faria tal coisa. O terapeuta explicou que tratava-se de um exercício. Que era para ela imaginar sua mãe sentada à sua frente.
Após duas tentativas disse que não conseguia fazer isso. Neste momento o terapeuta foi mais incisivo e disse: “é claro que você consegue! Use a sua mente, a sua imaginação! Você é capaz de fazer isto sim! Podemos fazer o que quisermos com os nossos pensamentos”.
A partir daí a cliente percebeu que o terapeuta estava sendo firme com ela e decidiu fazer o exercício.
Inicialmente, à medida que ia olhando em seus olhos, disse estar sentindo muito medo dela. Foi incentiadai a falar com a mãe sobre o que estava sentindo… Em determinado momento do exercício disse estar sentindo raiva de tudo aquilo, inclusive dela (sua mãe).
O terapeuta continuou incentivando a cliente para que expressasse para a sua mãe o que estava sentindo… até que começou a esboçar algum movimento com os punhos cerrados. Aproveitando a oportunidade e o terapeuta continuou incentivado-a … até que em determinado momento começou a socar a almofada em sua frente. Foi incentivanda até que se sentiu exausta. Em seguida começou a chorar intensamente. Percebemos que estava expressando ema emoção autentica naquele momento.
O terapeuta procurou então protegê-la (segurando a sua mão) e dando permissão para continuar expressando a sua tristeza (emoção proibida no passado). Comparando o choro do inicio da sessão, com o que a cliente estava expressando agora, via-se claramente a diferença. O primeiro era na realidade uma falsa tristeza e este uma tristeza autentica.
Até chegar a expressar a emoção autentica (tristeza) a cliente expressou inicialmente falso medo (não conseguir criar o filho), depois falsa tristeza, durante o exercício falsa raiva e finalmente tristeza autentica. Durante as pesquisas de sua infância descobrimos que havia reprimido a expressão de tristeza baseada no contexto religioso em que foi criada. A cliente disse que se lembrava da sua mãe sempre dizendo a ela que Deus não gostava de criança que chorava; dizia que Deus queria ver todo mundo alegre, contente, mesmo quando as coisas tivessem muito ruim. Pois se acontecesse alguma coisa ruim era porque Deus queria. Sua mãe dizia que todos da família (pai, mãe, irmão e ela) eram “tementes a Deus”. Dizia que esta expressão funcionava como uma espécie de jargão na família. Acrescentou que seu irmão atualmente é padre.
Disse que se lembra que quando era criança, se sentia triste, logo em seguida se sentia culpada por ter se sentido triste, pois Deus não iria gostar disto e poderia castigá-la duramente.
Acrescentou que mesmo percebendo que estava triste (sabia que estava triste) ficava disfarçando para enganar a Deus. Imaginava que se não demonstrasse que estava triste ele não perceberia. A partir daí os trabalhos terapêuticos foram dirigidos, em primeira instância, para a descontaminação de seu Adulto. Daí em diante ela começou a aceitar sua capacidade de fazer coisas, etc., o que foi prontamente aceito e gratificado pelo terapeuta. Só então, a partir daí, foi possível dar inicio aos trabalhos de analise dos Jogos e do Script.
Bibliografia:
1 – Berne, E. Sexo e Amor, José Olympio Editora, 2ª Edição, Rio de Janeiro, 1988.
2 – Berne, E. TA Bulletin, v. 3, n. 10, p. 127, apr., 1964.
3 – Berne, E. Introduccion al Tratamento de Grupo, Adiciones Grijalbo S/A, Barcelona, B. Aires. México, DF.
4 – Berne, E. O que Você Diz Depois de Dizer Olá?, Nobel Editora, São Paulo.
5 – Caracushansky, S. R. Curso Avançado de Análise Transacional de Base Psicanalítica, Editora Assertiva.
6 – English, F. O Fator de Substituição Disfarces e Sentimentos Reais, in: Prêmios Eric Berne.
7 – Goulding, R. e Goulding, M. Mandatos, Decisão e Redecisão, in: Prêmios Eric Berne.